Construindo pontes entre ciência, espiritualidade e mercado: impressões da Psychedelic Science 2025
Por Gustavo Ezequiel
Correspondente internacional do Instituto Micélio Sagrado
Em junho de 2025, participei da Psychedelic Science em Denver, a maior conferência do mundo dedicada à ciência psicodélica. Foram dias de imersão profunda em um ecossistema vibrante e contraditório, onde saberes ancestrais, pesquisas científicas, espiritualidade e interesses comerciais convivem — nem sempre em harmonia — sob o mesmo teto.
Algumas milhares de pessoas circularam pelos corredores do Centro de Convenções do Colorado. Um público tão diverso quanto o próprio universo psicodélico: neurocientistas, psicólogos clínicos, terapeutas, líderes indígenas, investidores, artistas, curadores, ativistas e curiosos simpatizantes. Um verdadeiro caleidoscópio de perspectivas, onde cada fala, cada encontro e cada painel acendia mais perguntas do que respostas.
A promessa científica
Os avanços apresentados foram impressionantes. Pesquisas sobre psilocibina, MDMA, cetamina e ibogaína apontam resultados cada vez mais sólidos no tratamento de depressão resistente, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e dependência química. O clima era de um otimismo cauteloso — afinal, os estudos clínicos avançam, mas os desafios regulatórios e éticos permanecem.
Mary Cosimano, referência em sessões de terapia com psilocibina na Johns Hopkins, conduziu um workshop sobre o tema e reforçou a importância da empatia e conexão genuína na preparação do paciente e na integração após a experiência psicodélica. Já Rick Doblin, fundador da MAPS, demonstrou serenidade e persistência ao comentar a recente reprovação do FDA ao uso terapêutico do MDMA para TEPT. Mesmo diante desse revés, Doblin falou com entusiasmo sobre seu sonho de várias gerações: reduzir o sofrimento humano e curar traumas com o auxílio consciente dos psicodélicos. Para ele, a jornada continua — e o horizonte ainda é de esperança.
A fé no centro da experiência
Entre os temas que mais despertaram meu interesse estiveram as pesquisas com líderes religiosos que vivenciaram experiências psicodélicas em contexto terapêutico ou cerimonial. Estudos conduzidos por instituições como NYU e Johns Hopkins vêm documentando como rabinos, padres, monges e pastores relatam reencontros com o sagrado, aprofundamento espiritual e reconexão com sua vocação após essas jornadas. Em vez de abalar suas crenças, muitos descrevem um fortalecimento de sua fé, acompanhado de uma ampliação da compaixão e do sentimento de unidade. Essas investigações desafiam o suposto antagonismo entre ciência, religião e psicodélicos, mostrando que o mistério pode ser vivido também com os pés na terra e o coração aberto ao transcendente.
Paul Stamets e o chamado dos fungos
Outro destaque foi a presença magnética de Paul Stamets, micologista visionário e referência mundial no estudo dos fungos. Ele apresentou duas palestras que lotaram o auditório: “O Potencial dos Cogumelos para Apoiar Nossa Mente e Bem-Estar” (The Potential of Mushrooms to Support Our Minds and Wellness) e “Paul Stamets em Seu Habitat Natural: Como os Cogumelos Podem Salvar o Mundo” (Paul Stamets in His Natural Habitat: How Mushrooms Can Save the World). Em ambas, Stamets entrelaçou ciência, espiritualidade e ativismo ecológico, defendendo o papel dos cogumelos como aliados na regeneração da saúde humana e do planeta. Suas ideias provocam e inspiram — e por isso, em breve publicaremos um post exclusivo aprofundando suas contribuições na conferência.
A voz dos ancestrais
Entre tantas falas técnicas, foi especialmente comovente ouvir representantes de povos originários. Líderes indígenas do Brasil, da América do Norte e da região Andina trouxeram um alerta claro: os psicodélicos não são apenas substâncias, mas portais sagrados de conhecimento. Pediram respeito às suas tradições, criticaram a apropriação cultural e cobraram que o chamado “renascimento psicodélico” não repita os erros do colonialismo.
Em uma fala tocante, um líder indígena falou da importância de respeitar e reverenciar o espírito sagrado das plantas de poder e não tentar domesticá-las nem isolar ou manipular suas moléculas.
A dissonância: entre o sagrado e o capital
Foi impossível não sentir uma dissonância cognitiva ao caminhar entre estandes de startups avaliadas em centenas de milhões de dólares e, logo depois, escutar um canto ancestral ecoando em um círculo de cura. A pergunta que me acompanhou durante toda a conferência foi:
como garantir que o futuro dos psicodélicos seja guiado pela sabedoria e bem comum e não apenas pelo lucro?
O papel do Brasil
O Brasil esteve presente, ainda que timidamente. Participantes brasileiros compartilharam experiências com ayahuasca, práticas integrativas e desafios políticos locais. Em um contexto de crescente interesse internacional pelos saberes da floresta, torna-se ainda mais urgente o fortalecimento de redes nacionais que possam dialogar com o mundo sem perder sua raiz.
Caminhos abertos
Volto dessa jornada com o coração expandido e um sentimento de responsabilidade ampliada. O Instituto Micélio Sagrado tem um papel fundamental nesse cenário global: preservar e honrar o sagrado, promover a escuta profunda, formar multiplicadores conscientes e manter vivo o fio que conecta o passado ancestral com as possibilidades do futuro.
O movimento psicodélico está crescendo. Mas para que floresça de forma saudável, precisa de solo fértil — e isso significa ética, cuidado, justiça e presença.
Que possamos seguir trilhando essas travessias com amor, união, coragem e humildade.