Cogumelos psilocibinos e direito comparado: panorama global da regulamentação e descriminalização até 2025
Última atualização: novembro/2025.
Introdução
A psilocibina — alcaloide presente nos cogumelos do gênero Psilocybe — encontra-se no centro de um processo de transformação global que combina ciência, direito, cultura e política. De substância rigidamente proibida pela Convenção da ONU de 1971, passou a ocupar espaço em pesquisas clínicas, programas terapêuticos e debates legislativos em diversos países.
O ano de 2025 marcou um ponto de inflexão, com avanços significativos em legislações nacionais, pressões internacionais e fortalecimento das evidências científicas. Contudo, para compreender esse processo, é fundamental situá-lo num continuum histórico: experiências de tolerância cultural, descriminalizações parciais, decisões judiciais estratégicas e, finalmente, regulações terapêuticas.
A Convenção de 1971 e os diferentes caminhos nacionais
A Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971 incluiu a psilocibina na Tabela I (Schedule I), restringindo sua produção, comércio e uso a contextos médicos e científicos autorizados (United Nations, 1971). Essa base global condiciona os países signatários, impondo que qualquer mudança regulatória dialogue com compromissos internacionais.
Apesar disso, a aplicação prática variou amplamente: alguns países nunca proibiram formalmente os cogumelos; outros descriminalizaram a posse; e alguns avançaram para programas clínicos.
Modelos de tolerância e descriminalização
Holanda: a proibição seletiva e a brecha das trufas
Até 2008, a Holanda permitia a venda legal de cogumelos psilocibinos frescos em smart shops. Após incidentes midiáticos com turistas — incluindo a morte de uma jovem francesa em Amsterdã —, o governo proibiu a venda em 1º de dezembro de 2008 (Netherlands Gov, 2008).
A decisão foi política e reativa, voltada a responder a pressões de imagem, já que as trufas (sclerotia), igualmente psicoativas, permaneceram legais. A proibição, assim, revelou-se uma medida mais simbólica do que efetiva.
Jamaica, Bahamas, Ilhas Virgens Britânicas, Nepal e Samoa: tolerância estrutural
Nesses países, a psilocibina e os cogumelos nunca foram incluídos nas listas de drogas proibidas, resultando em uma lacuna legal. As razões variam:
- Jamaica: tradições enteogênicas ligadas ao rastafarianismo e práticas afro-caribenhas sustentam retiros psicodélicos legalizados.
- Bahamas e Ilhas Virgens Britânicas: ausência de proibição explícita, associada ao incentivo ao turismo psicodélico.
- Nepal: uso integrado em práticas xamânicas e rituais hindu-budistas, semelhante à tolerância cultural da cannabis.
- Samoa: baixa pressão internacional e práticas polinésias de uso enteógeno explicam a não inclusão em listas proibitivas.
Esse modelo aproxima-se da ayahuasca: por serem substâncias de origem natural, associadas a espiritualidade e com baixo risco relativo, afasta-se o aparato repressivo.
Outras experiências parciais
- Portugal: descriminalizou a posse para uso pessoal em 2000.
- Chile e Colômbia: posse pessoal descriminalizada; cultivo e comércio proibidos.
- Uruguai: uso pessoal não é proibido, mas sem regulação específica.
- Espanha: cultivo e consumo privado tolerados.
- México: proteção constitucional ao uso ritual indígena, reafirmada no Amparo 237/2021.
- Suíça: descriminalização em alguns cantões e autorização em protocolos de pesquisa.
O curioso caso brasileiro: ambiguidade normativa, insegurança jurídica e repressão policial
No Brasil, vigora um paradoxo normativo:
- Psilocibina e psilocina constam da Lista F2 da Portaria SVS/MS nº 344/1998 (ANVISA), sendo substâncias proibidas.
- Cogumelos psilocibinos, entretanto, não integram a Lista E (plantas e fungos proscritos).
Ou seja: a molécula é proibida, mas o fungo in natura não.
Pelo princípio da legalidade penal e da taxatividade, não se pode criminalizar conduta por analogia ou criar crimes por meio de interpretação extensiva. Assim, a jurisprudência recente tem reconhecido a atipicidade do cultivo, porte ou comercialização de cogumelos.
Exemplo emblemático ocorreu no Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (Apelação Criminal nº 0816088-38.2021.8.12.0001), em que a Des. Elizabete Anache destacou que o Psilocybe cubensis não está na lista de fungos proibidos, e que a mera presença da substância psilocibina não autoriza condenação criminal. O acórdão assentou que não é tolerável punir alguém em cenário de ambiguidade normativa, reconhecendo a hipótese de erro de tipo invencível (Carta Capital, 2023). No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (Proc. nº 5067224-18.2024.8.13.0024) decidiu por unanimidade pela atipicidade da conduta, em compasso com sentenças de primeira instância em outros estados, que destacam a omissão regulatória.
Apesar disso, na prática, polícias civis, em especial no Distrito Federal, continuam tratando a posse ou cultivo como crime, deflagrando operações policiais e perseguindo cultivadores. Foi o que ocorreu na recente operação policial que culminou no processo 0711776-10.2025.8.07.0001, TJ-DF, ocasionando inúmeras prisões de empresários do cultivo; sob o argumento de que os cogumelos contêm substância proscrita, prática que fere os princípios constitucionais básicos da República (taxatividade, reserva legal, proibição da analogia em prejuízo do réu).
Além da jurisprudência, a doutrina especializada converge no mesmo sentido. Conforme destaca artigo publicado na Revista Consultor Jurídico, a ausência dos cogumelos psilocibinos na Lista E da Portaria SVS/MS nº 344/1998 evidencia a impossibilidade de criminalização por analogia. O estudo enfatiza que 'a incriminação da conduta carece de base legal expressa, sob pena de violação frontal aos princípios constitucionais da taxatividade e da reserva legal', concluindo que, diante dessa omissão, as prisões e denúncias ofertadas configuram arbitrariedades incompatíveis com o Estado Democrático de Direito (CONJUR, 2024).
Somam-se ainda relatos de uso ritual entre grupos religiosos minoritários e indígenas, sem qualquer amparo regulatório. A omissão da ANVISA e do CONAD agrava o quadro: mesmo cientes da lacuna normativa, evitam enfrentá-la, perpetuando insegurança jurídica. Essa inércia conivente permite prisões arbitrárias e impede a construção de debate democrático sobre usos culturais, religiosos e científicos, colocando o país na contramão das práticas internacionais acerca do tema.
Avanços regulatórios em 2025
Estados Unidos — Nível Federal
Nos Estados Unidos, em nível federal, a Drug Enforcement Administration (DEA) encaminhou em 11 de agosto de 2025 ao Department of Health and Human Services (HHS) a petição para reclassificar a psilocibina da categoria Schedule I (sem uso médico reconhecido) para Schedule II (uso controlado). Essa revisão científica está sendo conduzida pelo HHS/FDA, que avalia riscos, benefícios e potencial de abuso da substância.
Enquanto o parecer não é publicado e a DEA não emite nova regra, a psilocibina permanece ilegal em nível federal. Contudo, o movimento é considerado um marco histórico que pode influenciar políticas em outros países.
Estados norte-americanos — protagonismo local
- Novo México (abril/2025 — SB 219): criou programa médico regulado, voltado a depressão resistente, TEPT e cuidados paliativos, com implementação até 2027.
- Colorado: em 2025 iniciou a emissão de licenças para facilitadores e healing centers, permitindo acesso supervisionado ampliado.
- Nova York (outubro/2025): realizou a primeira audiência legislativa oficial sobre psilocibina medicinal.
- Massachusetts (setembro/2025): promoveu audiências públicas, impulsionadas por veteranos e grupos de saúde mental.
- Arizona (SB 1555, 2025): aprovou base legal para produto sintético de psilocibina, condicionada à aprovação da FDA.
- Illinois, Connecticut, Iowa: discutem regulamentação parcial voltada a grupos vulneráveis. Possuem projetos de lei em tramitação, voltados a descriminalização limitada ou programas-piloto de uso terapêutico.
Europa e Oceania
- Nova Zelândia (junho/2025): autorizou psiquiatras certificados a prescrever psilocibina fora de ensaios clínicos em casos de depressão resistente (Time, 2025).
- Alemanha (julho/2025): a agência BfArM aprovou programa de uso compassivo para depressão resistente.
- Reino Unido (julho/2025): governo aceitou facilitar pesquisa clínica, dispensando licença de entorpecente de Schedule I.
- Austrália (2023-2025): desde 2023 autorizava psilocibina em depressão resistente e MDMA para TEPT; em 2025, passou a financiar terapias com psilocibina para veteranos, consolidando política pública de saúde (DVA, 2025).
- Canadá (2022-2025): desde 2022 concede isenções individuais para usos terapêuticos e religiosos (ex.: TheraPsil). Em 2025, o governo estuda expandir o acesso via programas de uso compassivo (Health Canada, 2025).
Evidências científicas
Em 2025, a Compass Pathways publicou resultados de ensaios clínicos de Fase 3, mostrando eficácia superior ao placebo em depressão resistente, ainda que com efeito moderado (Compass Pathways, 2025). Além disso, estudos emergentes indicam que terapias com psilocibina apresentam boa relação custo-efetividade, um argumento de peso para sistemas de saúde pública que buscam aliar inovação terapêutica a sustentabilidade econômica (Carhart-Harris et al., 2024).
Resistência cultural, política e estigmas
Apesar dos avanços, a pauta psicodélica enfrenta estigmas sociais e políticos. Conservadorismos e moralismos ainda bloqueiam debates.
No Brasil, além da resistência, há omissão regulatória de ANVISA e CONAD, que perpetua arbitrariedades e legitima repressão policial sem base legal. Esse silêncio institucional equivale à conivência com a inconstitucionalidade.
Conclusão crítica
O panorama global de 2025 mostra uma substância em transição: de alvo da repressão criminal a objeto de políticas de saúde, ciência e direitos culturais.
O Brasil, porém, permanece na contradição: jurisprudência reconhece atipicidade, mas polícias reprimem; molécula proibida, fungo não; órgãos regulatórios omissos.
A psilocibina não é questão de polícia, mas de saúde pública, cultura e ciência. A manutenção do vazio normativo perpetua arbitrariedades e estigmatização, expondo a fragilidade do sistema jurídico-regulatório brasileiro diante de temas novos e complexos.
Referências
CARTA CAPITAL. Em decisão inédita, cultivador de cogumelos é absolvido em segunda instância. 2023. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/psicodelicamente/em-decisao-inedita-cultivador-de-cogumelos-e-absolvido-em-segunda-instancia/. Acesso em: 6 out. 2025.
CARHART-HARRIS, R. et al. Cost-effectiveness of psilocybin-assisted therapy for treatment-resistant depression: a model-based analysis. Frontiers in Psychiatry, 2024.
COMPASS PATHWAYS. COMP360 psilocybin therapy Phase 3 results for treatment-resistant depression. Londres, 2025. Disponível em: https://compasspathways.com.
CONJUR. A atipicidade dos cogumelos mágicos. Consultor Jurídico, 10 out. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-out-10/a-atipicidade-dos-cogumelos-magicos/.
FORBES. DEA Forwards Psilocybin Rescheduling Petition To HHS For Review. 23 ago. 2025. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/ajherrington/2025/08/23/dea-forwards-psilocybin-rescheduling-petition-to-hhs-for-review.
NATIONAL LAW REVIEW. Drug Enforcement Administration Sends Psilocybin Rescheduling Petition To HHS. ago. 2025. Disponível em: https://natlawreview.com/article/crank-party-dea-about-get-it-psilocybin.
NETHERLANDS GOV. Verbod op paddo's [Proibição de cogumelos mágicos]. Amsterdã, 2008.
TIME. New Zealand approves psilocybin for treatment-resistant depression under medical prescription. 18 jun. 2025. Disponível em: https://time.com/7295413/psilocybin-magic-mushrooms-hallucinogen-new-zealand-approved-medicinal-therapeutic-depression.
UNITED NATIONS. Convention on Psychotropic Substances. New York: UN, 1971.