Psilocibina e o “Direito de Experimentar”: uma inflexão histórica

O Senado dos Estados Unidos (EUA) passou a se engajar diretamente na ampliação do acesso a psicodélicos para o tratamento de doenças mentais. O projeto de lei suprapartidário “Liberdade para Curar” (Freedom to Heal) surge como uma nova ferramenta para veteranos de guerra no enfrentamento do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), sem a necessidade de viajar ao México, à Costa Rica ou ao Brasil para se submeter a terapias psicodélicas.

O TEPT está na raiz da epidemia de suicídios entre ex-combatentes, que, segundo alguns levantamentos, chega a cerca de 18 mortes por dia — mortes, note-se, não tentativas. Diversas organizações de apoio organizam viagens ao exterior para que soldados traumatizados possam obter tratamento, por exemplo, com ibogaína e 5-MeO-DMT.

A legislação proposta pretende incluir os psicodélicos no escopo da Lei do Direito de Experimentar (Right to Try Act), que permite que profissionais de saúde prescrevam medicamentos experimentais quando pacientes em estado grave tenham tentado, sem sucesso, os tratamentos disponíveis. Assinada por Donald Trump em 2018, essa lei originalmente não abrangia substâncias listadas no famigerado Anexo I (Schedule I) de drogas proibidas.

Se aprovado como lei, o texto do “Liberdade para Curar” obrigará o governo a credenciar profissionais para realizar essas prescrições excepcionais. A condição principal é que o medicamento proibido tenha passado pela fase 1 de testes clínicos, demonstrando segurança e indícios de eficácia.

Segundo o boletim Psychedelic Alpha, contudo, algumas precondições excluiriam do acesso a ibogaína, hoje popular entre veteranos (no Brasil, a Anvisa permite esse uso excepcional mediante autorizações caso a caso). Em princípio, estariam cobertos apenas compostos como psilocibina (dos chamados “cogumelos mágicos”) e MDMA, que já alcançaram a fase 3 de ensaios clínicos.

O projeto de lei norte-americano Freedom to Heal representa um marco silencioso, porém profundo, na política global sobre psicodélicos. Ao propor a inclusão dessas substâncias no regime do Right to Try Act, o Senado dos EUA reconhece, ainda que de forma indireta, algo que a ciência vem demonstrando de modo consistente: certos psicodélicos possuem potencial terapêutico real, especialmente no tratamento de transtornos mentais graves e refratários, como o TEPT.

Embora o debate público frequentemente destaque substâncias como ibogaína, 5-MeO-DMT e MDMA, o verdadeiro eixo de consolidação científica hoje é a psilocibina, composto ativo presente em diversas espécies de cogumelos do gênero Psilocybe. Diferentemente de outras substâncias, a psilocibina já percorreu um caminho regulatório robusto, com ensaios clínicos de fase 2 e 3, conduzidos por instituições de alto prestígio, como a Johns Hopkins University, o Imperial College London e estudos multicêntricos apoiados pela FDA.

Os dados acumulados indicam eficácia potencial da psilocibina no tratamento de depressão resistente, ansiedade associada a doenças terminais, dependência de álcool e tabaco, além de resultados promissores para o próprio TEPT. Mais importante: esses efeitos não se dão por uso contínuo, mas por intervenções pontuais, associadas a acompanhamento psicoterapêutico estruturado, o que desafia o paradigma clássico da psiquiatria farmacológica.

Nesse contexto, o Freedom to Heal não equivale a uma legalização ampla, nem a um endosso recreativo. Trata-se de um mecanismo de exceção, voltado a pacientes graves que já esgotaram as alternativas terapêuticas convencionais. A exigência de que a substância tenha passado, no mínimo, pela fase 1 de testes clínicos — e, na prática, pela fase 3, como é o caso da psilocibina — cria uma barreira técnica que afasta improvisações e reforça o caráter terapêutico-científico da proposta.

Curiosamente, isso explica por que a ibogaína, apesar de amplamente utilizada por veteranos em circuitos internacionais, tende a ficar fora do escopo inicial da lei: seus estudos clínicos ainda não alcançaram o mesmo grau de padronização regulatória exigido pelas agências norte-americanas. Já a psilocibina, ao contrário, encontra-se hoje no centro de um processo de normalização científica, que pode levar, em médio prazo, à sua reclassificação fora do Schedule I.

Do ponto de vista geopolítico e jurídico, a proposta também lança luz sobre uma contradição global: enquanto países como os EUA mantêm formalmente essas substâncias no mais alto nível de proibição, toleram — ou até estimulam indiretamente — o turismo terapêutico para países da América Latina. O Freedom to Heal surge, assim, como uma tentativa de internalizar esse fenômeno, submetendo-o a critérios terapêuticos, éticos e regulatórios mais rigorosos.

Em síntese, ainda que o debate inclua múltiplos psicodélicos, é a psilocibina que se apresenta como o verdadeiro caso-teste de uma nova racionalidade terapêutica: menos centrada no uso crônico de fármacos, mais orientada à transformação subjetiva profunda, com base em evidência científica. O que está em jogo não é apenas uma mudança na lei, mas uma inflexão histórica na forma como sofrimento psíquico, ciência e política de drogas se articulam no século XXI.

Fontes

Right to Try Act (2018) – U.S. Federal Law

Psychedelic Alpha – Análises regulatórias e clínicas sobre psicodélicos

Johns Hopkins Center for Psychedelic and Consciousness Research

Imperial College London – Psychedelic Research Group

FDA – Breakthrough Therapy Designation for Psilocybin (Depression)

Carhart-Harris, R. et al. Psilocybin versus escitalopram for depression. New England Journal of Medicine

Nichols, D. Psychedelics. Pharmacological Reviews

Anterior
Anterior

Revisão de estudos revela falta de padronização em protocolos de terapia com psilocibina

Próximo
Próximo

República Tcheca e a Virada Global na Política dos Cogumelos Psilocibinos