O Menino Azul e o Cogumelo Perdido

O mito de Glauco como eco esquecido dos antigos cultos à psilocibina.

Há histórias que parecem apenas fábulas, até que olhamos com outros olhos.

O mito de Glauco conta a história de sua morte por afogamento e subsequente ressurreição. Glauco era um menino curioso, filho do rei Minos, da antiga Creta. Conta o mito que ele era azulado, morreu ainda criança, ao cair dentro de um grande pote de mel, um pithos, vaso usado tanto para armazenar alimentos quanto para enterrar os mortos. 

Minos, desesperado, buscou auxílio entre os adivinhos. Um deles, Poliídos, conseguiu localizar o corpo. Mas o rei queria mais: exigia que o menino voltasse à vida. Então, Poliídos foi confinado no interior de uma tumba, ao lado do corpo inerte do menino, forçado a encontrar um caminho para ressuscitá-lo.

Ali, no silêncio e na sombra, algo extraordinário aconteceu.

Uma serpente se aproximou do cadáver. Poliídos matou-a com uma pedra. Em seguida, surgiu uma segunda serpente, que, ao ver sua companheira morta, sai, mas retorna logo depois com uma erva misteriosa, que aplica sobre o corpo da outra. E assim a serpente morta revive instantaneamente.

Poliídos, maravilhado, pegou a mesma planta e a colocou sobre Glauco. E o menino despertou.

Ainda assim, Minos não permitiu que o adivinho fosse embora sem antes ensinar sua arte divinatória ao filho. Poliídos aceitou. Mas, ao partir, pediu que Glauco cuspisse em sua boca. Com esse ato simbólico, o menino perdeu todo o saber que havia recebido. O mistério se foi. A visão foi esquecida.

Mas... e se esse mito falasse de cogumelos?

O etnobotânico Terence McKenna propôs uma leitura fascinante. Glauco, o menino azulacinzentado, seria uma metáfora viva do cogumelo psilocibino.

Micologistas sabem que espécies como o Psilocybe cubensis adquirem uma coloração azul quando são colhidas ou danificadas. Essa oxidação revela a presença de psilocibina. Em grego, “Glauco” significa exatamente isso: azulado, cinzento-azul.

Além disso, o mel é um antisséptico natural, tradicionalmente usado em diversas culturas para conservar substâncias sagradas. No México, há registros antigos do uso do mel para preservar cogumelos contendo psilocibina, prática que persiste até hoje. No Rig Veda, textos sagrados da Índia, o mel aparece com frequência associado ao Soma, a substância da imortalidade. E Heródoto conta que os babilônios conservavam seus mortos em mel, assim como se usavam grandes vasos — phitoi — para sepultamento durante a Idade do Bronze egéia. O mel não é apenas doçura: é ponte entre mundos, veículo de permanência.

Gado, serpentes e sabedoria vegetal

Há elementos simbólicos recorrentes no mito que apontam para um antigo culto psicotrópico. A vaca de três cores, por exemplo, parece uma imagem perdida de valor ritual. Cogumelos como o cubensis crescem preferencialmente em esterco de gado. Assim, o tema do rebanho e da identificação do “fenômeno semelhante” à vaca parece codificar um saber micológico simbólico.

A serpente, por sua vez, é guardiã do segredo vegetal. Desde o Éden até os ritos amazônicos, serpentes são associadas ao conhecimento das plantas que curam ou transformam. Foi ela quem trouxe a erva da ressurreição. E é Poliídos, a figura do xamã, quem observa, aprende e age. Compartilha o saber com Glauco, mas depois o retira. Isso ecoa a natureza fugidia das visões psicodélicas, que podem ser profundas e lúcidas, mas raramente se deixam reter com clareza pela mente racional.

Na Mesoamérica, cogumelos sagrados são tradicionalmente chamados de “niños” ou “os menininhos doces”, como dizia Maria Sabina, a xamã de Huautla de Jiménez. Para ela, eram entidades infantis, divinas e alquímicas. Assim como Glauco, são pequenos mensageiros da alma, portadores de um saber suave e imenso.

Visões que vêm, e vão

No fim da história, Glauco esquece tudo que viu e aprendeu. A experiência é profunda, mas escapa. O saber retorna ao invisível.

Essa é a metáfora perfeita para a natureza das visões psicodélicas. Como os sonhos, elas nos visitam com força, beleza e profundidade, mas também fogem da linguagem comum e do controle da mente racional. São fragmentos de um saber que precisa de preparo, silêncio e integração.


O que essa história revela?

  • Que o sagrado nem sempre se mostra de forma óbvia. Às vezes, ele se esconde num pote de mel, numa cor azulada, numa história antiga esquecida.

  • Que os cogumelos não são apenas substâncias, mas mensageiros de mitos, arquétipos e memórias ancestrais.

  • Que há algo perdido na nossa relação com o mistério, algo que os antigos sabiam, mas que a modernidade racionalizou, proibiu ou ridicularizou.

  • E que talvez, ao olharmos novamente para esses mitos com os olhos da alma, possamos nos lembrar do que foi esquecido.

Nós, do Instituto Micélio Sagrado, acreditamos que recuperar essas histórias é também restaurar a mágica aliança esquecida entre o humano, a terra e o mistério.
Pois o que hoje chamamos de enteógenos, ontem foi milagre, renascimento, e sabedoria das serpentes.

E talvez, como Glauco, estejamos à beira de lembrar não apenas o que fomos, mas o que ainda podemos ser.

Desta vez, sem negar o invisível.

Referência

McKENNA, Terence. A carne dos deuses: o mundo perdido do culto do xamanismo e da religião enteógena. São Paulo: Rocco, 1998. Cap. 8: O Crepúsculo do Éden: A ereta minóica e o Mistério de Elêusis e o mito de Glauco, p. 150–155.

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